sábado, 7 de janeiro de 2017

“A sétima árvore”, conto de Milton Hatoum



Na vida há eventos assim, às avessas. Coisas que podem acontecer com você, que está me ouvindo; ou com aquele fulano que nos olha de soslaio. Comigo aconteceu, nunca mais esqueci. Basta lembrar.

Era no tempo da guerra, uma grande guerra no outro lado do mundo, diziam. Eu morava num seringal do Purus, o rio das febres, de tantas mortes. O seringal era um mundo fechado na floresta, que é um universo, um encantamento e um grande perigo. É preciso conhecer: as árvores, as plantas do mato, aquele bicho, um ruído estranho; quase tudo é um fenômeno, tudo tem o poder da ilusão. A floresta é uma monotonia e também uma surpresa: há árvores parecidas, mas os caminhos que as unem são diferentes, outros. Eu era um homem solitário, que percorria o mesmo caminho, todas as manhãs. Saía cedo, no fim da noite, com a poronga atada na cabeça, como se fosse um terceiro olho imenso e luminoso, que ajuda a enxergar o que os olhos não veem. Levava uma lata com comida: mandioca cozida, farinha e carne. Já não usava a bandoleira com a espingarda: o tempo nos ensina a ser corajosos e humildes. Não posso afirmar que conhecia a floresta; sabia apenas o meu caminho, o pequeno labirinto por onde andava, riscando o trono das seringueiras, caçando, observando as evidências e os mistérios. Para um homem qualquer, um Rosalvo Sarmento, essa era a vida possível: conhecer o caminho que se pisa, eleger seu labirinto, e nele viver, perdido no tempo. Pois, o que é o tempo para um fulano que vive no mato? Quase tudo é espaço; aos poucos, o seringueiro entende que sua moradia está em toda parte: nos gritos dos macacos que já não nos assustam, nas pegadas do animal que já se nomeia, nas febres que a gente aplaca com uma infusão de ervas. Com destreza e paciência enfrentamos os perigos, as ameaças invisíveis. Mas há surpresas: o rei pode acordar deposto, o traidor ser traído. Eu, seringueiro e caçador, um dia fui caçado. 
    

Milton HatoumEscritor amazonense também é autor de "Dois Irmãos", que inspirou minissérie da TV Globo
Aconteceu numa madrugada fria de junho, lá se vão trinta anos. Tinha preparado a comida, estava atrasado. Cada um percebe o momento certo da partida; por alguma razão que não me lembro, acordara cansado e indisposto. Uma neblina me ofuscava a visão, o sol ainda não surgira. O percurso da minha caminhada tinha a forma de um oito, era como se um número enorme rasgasse a floresta. Alcancei a primeira seringueira, cravei a tigela para recolher o leite, fiz os cortes no tronco e segui meu caminho. Na sétima árvore parei para descansar. No chão úmido havia folhas apodrecidas. Ali, a floresta era nativa, mundo natural milenar. E ali eu era o único estranho: eu, meus passos e minha cantiga monótona, melodia de um homem sozinho. Tirei a poronga da cabeça, já havia uma certa claridade, não muita, a mata é escura, espaço de pouca luz. Agachado, limpei o chão, catei gravetos e folhas, e coloquei lata de comida perto da fumaça, para amornar. Não era o momento de quebrar o jejum, mas eu fraquejava, tinha sono no corpo. Sem esperar, senti um baque nas costas, depois uma dor aguda. Sabia que era preciso lutar, mas contra quem? Na floresta, quando não se vê um bicho, pressente-se o movimento dele, sua fala, seu sussurro. Essa é a angústia de um homem em combate: não encarar o inimigo, a fera cravada nas costas. Pensei numa onça, mas a pintada derruba e arrasta um homem. O bicho não me derrubou no bote, não me arrastou, não estralhaçou meu ossos. No chão, com um rodopio rápido, ele se desgarrou de mim; senti, então, o cheiro do felino, de gato-do-mato, maracajá. Não me deu tempo para fugir, ele avançou de novo, arranhando meus braços, minhas mãos; depois recuou: ensaiava outro bote? Tinha nos olhos o fogo do ódio, um quê de vingança, e eu pensei: isso é coisa de vida ou morte. Vive quem vê primeiro um descuido do inimigo. O felino estava contrariado, irado, e eu, cauteloso: tinha uma ponta de faca afiada na cintura, prendi a lâmina entre os dedos, esperei a próxima investida. Fui pontual e seguro no golpe. 


Alguns animais a gente aniquila com cálculo, aproveitando a força deles. Mas isso de matar bicho dá desânimo, e jaguatirica não é de meter medo, de desafiar; tem gente que cria filhotes, deixa as crianças brincarem com eles. Por isso estranhei, aquela fúria era um mistério, mas na vida há lacunas, caminhos cortados.

Naquela manhã não fechei o corte da estrada. Voltei para o casebre, ensanguentado, faminto, o dia estava perdido. Não consegui dormir, apenas comi um pouco de mandioca. Meu pensamento estava no pé da sétima árvore; reparei no meu corpo, nas unhadas vermelhas, nas inchaduras, na palma da mão esquerda, em carne viva, desfigurada. Estava baqueado, mas não odiava o animal. Na luta com uma fera o homem se veste de bicho, somos quase o mesmo, as armas, sim, são diferentes. O bote traiçoeiro me deixara espantado, é raro jaguatirica se enfezar assim, sem mais nem menos. A curiosidade anima o homem; regressei à sétima árvore antes que as formigas devorassem os olhos do gato. Mirar um animal sem olhos é uma coisa terrível, pior do que vê-lo morto, mais amargo do que matá-lo.
maracajá não estava no lugar da luta. Desconfiei, segui um rastro, farejei; aí sim, a suprema surpresa, a aparição: vi duas jaguatiricas deitadas, a que eu matei e outra, fêmea, de corpo inteiro, também morta. Os corpos juntos, como se estivessem dormindo, acasalados. Cogitei, fiz perguntas para mim: o gato me atacara porque atrapalhei a brincadeira dele? E ela, a fêmea, sofrera com a morte do meu agressor? Morrera de sor saudosa? A floresta é só perguntas. Ali, no leito de folhas onde estavam, fiz algo que nunca fizera antes: tirei com a lâmina a pele de ambos, e as pendurei, lado a lado, perto de minha rede.
Passou o tempo, a grande guerra já é história, mas ainda observo as duas peles juntas, pregadas na madeira da palafita onde moro. Elas têm um cheiro forte, de instante carnal, de ato definitivo e fulminante. Hoje, sou um cidadão, um guarda-noturno, o mesmo Rosalvo, só que outro, envelhecido. Dessa guarita vigio os homens, os suspeitos e os intrusos. O espaço aqui é pouco, só há portas contra, nenhuma abertura, nenhum horizonte. A única saída é ruminar, passear com a memória através do tempo. Lembrar não é aprender? Não se aprende lembrando?
Publicado originalmente em outubro de 1989, na edição 48 da revista Globo Rural.

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